Ateu: uma palavra que lembro como aprendi

Quando se tem 12 anos não se dispõe de muita vontade própria, normalmente. E lá estava eu com minha mãe, acompanhando-a em mais uma das costumeiras e fastidiosas, para mim, visitas às suas amigas. A descrição do lugar pode parecer encantadora: uma fazenda no meio do nada, frutas maduras nos pés, uma cachoeira convidativa instalada no rio que cortava o quintal da casa. Mas eu já estava muito habituado com aquilo e a única coisa na propriedade que me prendeu a atenção por alguns minutos foi observar o funcionamento do moinho de milho tracionado pela água desviada de seu curso natural através de um sistema de canaletas.

De volta à cozinha, onde acontecem as conversas de comadre, sentando num cantinho, buscava qualquer coisa que me tirasse dali momentaneamente. Li tudo o que era possível, revistas de fofocas, receitas, calendários, bulas de remédio, até decidir perambular pela casa grande e pouco mobiliada. Minha curiosidade permitiu-me encontrar, atirado embaixo do sofá, um livro de poesias de Drummond de Andrade. Não lembro qual era a obra que me fez postergar o ataque aos bolinhos de chuva que estavam saindo do óleo a perfumar até a sala. O autor não era totalmente desconhecido para mim, tinha lido inúmeras vezes a crônica No Restaurante, incluída em certa coletânea. A lembrança me fez verter a atenção que tinha nos versos para a orelha do livro. A curta biografia trazia duas novidades que não esqueci: sua morte no dia do me aniversário e a palavra “ateu”.

Soaria estranho eu não conhecer tal verbete a esta idade, não fosse o fato de eu morar, havia anos, em um lugarejo com dezesseis casas, três igrejas, uma escola e um botequim, apenas. Sem televisão, bibliotecas ou bancas de revistas, minha fonte de conhecimentos era limitada aos livros infantis e adolescentes que minha mãe, única professora do local, guardava em casa para que não fossem saqueados durante os períodos em que a escola era emprestada, pela municipalidade, à uma quarta denominação cristã que não tinha sede fixa. Ser religioso não apenas era obrigatório, mas prático, afinal, os cultos aos domingos era uma das poucas formas de entretenimento fora da rotina diária.

Fui, então, indagar minha mãe sobre a palavrinha estranha a meus ouvidos e olhos. Ela me responde secamente “é não acreditar em Deus”. O incomodo que uma simples palavra pode causar nas pessoas é incrível. Nossa anfitriã reagiu mais energicamente, mas se acalmou ao ter a formidável ideia de usar, futuramente, aquelas páginas como combustível para o fogão à lenha que, nesse momento, cozia nosso jantar. Para minha surpresa, não me tomaram o profano objeto e voltei à poltrona tentar continuar a leitura. Não consegui me concentrar imediatamente. Não me cabia que aquele arquiteto de poesias tão belas estivesse queimando no inferno.

Minha falta de fé já vinha me assombrando fazia tempos. Naquele instante, senti medo novamente. Queria ter algo daquele talento, sem perder minha alma. Não terminei de ler o livro, a ordem era clara “Venha jantar, para irmos embora depois”. Poderia tê-lo salvo de seu cruel destino, mas não o fiz. Provavelmente, o intento me traria mais dilemas morais, de acordo com a educação que tinha naquela época. Embora não tenha me tornado o escritor habilidoso que desejei, sinto orgulho de compartilhar com Drummond uma de suas melhores qualidades: ser ateu.

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